terça-feira, 24 de julho de 2012

OLHOS DE DRAGÃO



Faz um tempo que partiu
Sua partida partindo meu corpo ao meio
Sua ida buscando um retorno
Um recomeço
Distancia meus sentidos dos sentidos
Momentos do nosso amor
Perco o sentido
Sem saber que ainda sinto
Perco o sabor
Sem saber que ainda minto
Perco a dor
Sem saber que ainda sofro

As tuas palavras não saem da minha cabeça
Do meu quarto, a tinta não sai da parede
Não consigo abrir a porta, sem me jogar da janela
Não consigo dizer que está morta
a beleza por trás da máscara de fera
nos olhos da bela
carruagem adormecida em meu jardim
perco o desejo
sem saber que estás em mim
perco o rumo
sem saber que não é o fim
perco a mim mesmo
sem saber onde estás

faz um tempo que partiu
com tua ida, sem a volta
num tempo de chuva
que me sorriu
teu rosto, teu sabor carinhoso de ser
me perco a vontade
de tanto não saber
nadar no mistério
me perco na idade
de não poder
obter o que quero
perco sentindo não saber
que ainda sinto
o amanhã entre nós
nosso alvorecer
perco-me de tanto saber
que além do tempo
só existe teu rosto
de tanto ser
para além de mim mesmo
o meu único encosto
apoiado em ti
em delicada comunhão
em medo persecutório
de rachar com loucura
as preciosas pedras
da nossa arte
a invencível escultura
do nosso ser
para além do tempo
e das lágrimas
do amanhecer
quando voltar a sorrir
e parar de chover
a indigesta ilusão
de não saber
se tenho o brilho dos corpos
ou se ainda carrego
o pesos dos nossos mortos...

vivendo em
minhas mãos


FC



segunda-feira, 23 de julho de 2012

ADAGIO DE UMA COTOVIA SEM VOZ



-Ela também tinha o seu lugar…
-Você não deixou ele existir,
-Muito alem daquilo que um dia seria compreensível
-Você não deixou ele falar
-Muito alem de eu e você, meu querido
-Você não deixou ele viver, enquanto ele podia, e agora estamos aqui, trancados para sempre nessa casa, no fim do mundo...


Ela também tinha o seu lugar, amarrada dentro de uma gaveta no sótão...
Eram seus olhos que não podiam falar
Eram tuas mãos que não podiam tocar
Afinal das contas, o que uma criança pode entender?
Pode escutar?
Suas vozes são os seus fantasmas, suas lagrimas reprimidas para dentro de uma garrafa de gin



Era noite quase escura,
Era branco no preto
Certo rabisco,
Incerta rasura...
Eram teus lábios no espelho
Vermelhos
Os teus olhos nos meus
E as tuas dores de cotovelo
De cotovia acidentada
De roupas velhas
Mal passadas
Do gesto,
A doce finura
E do amor,
Uma simples rasura
O indigesto gesto
Da não gestão
Da gestação passada
Amargurada
Numa árvore raquítica
Despedaçada
Pobre ilusão
Atravessada por uma corda
De um violino no pescoço
No rosto uma figueira
Flutuando em eterno exílio
E por debaixo das pálpebras
Suicídio
Dos versos sem memórias
Dos gestos sem vitórias
E um triste pedido
Para que fiques
Mesmo sabendo
Que de novo
Irás embora
Meu inverno infinito
Meu nefasto berço
Amarrado no pescoço
Junto a um terço
Que enforca
Meu menino prodígio
Sem tempo,
Meu relógio sem horas
E de novo um pedido
Para que fiques
Mesmo sabendo
Que esse tempo
Não existe no agora
Que essa vida
De dentro
Não existe lá fora


Assim cantavam as cotovias, como anjos vermelhos no telhado do céu, vestindo suas túnicas transparentes de inocência, e manchadas de desejo...
Era o céu quem lhes falava, e sua voz ainda não tinha se imbuído do timbre do fracasso humano, de todo teor do pedaço infernal habitável em um ser...
Era o céu quem lhe falava,
E a cotovia cantava,
Cantava,
Era o céu quem lhe ensinava,
E a cotovia chorava,
Chorava,
Era o céu que lhe abrigava,
E a cotovia voava,
Voava,
Inocente e feliz
Um mestre no papel de um aprendiz
Livre no seu ar
Nas suas golfadas de vida,
Uma voz para não calar
E um pensar para escrever
Todas as notas de um único vôo
Contido no incontido de um único ser
Um anjo e uma voz
Em todos os corpos
Um único ser para todos nós
Uma infinitude de corpos
Para uma única voz

Assim cantavam os anjos em alegria
Assim dançavam os homens
Fantasiados de cotovias...

FC

sexta-feira, 20 de julho de 2012

BODAS DE PRATA



Eles ainda tinham uma vida,
Fora da garrafa e do copo sem dono,
Eles tinham mais que ferida,
Fora dos tapas e do abandono,
Eles ainda tinham uma parte intacta,
Não sofrida,
Eles ainda tinham alma com olhos humanos
Almas que não estavam vendidas
Eles ainda da vida tinham o mistério
Alguma fração não corrompida
Ainda tinham jardim fora do cemitério
Tinham a cova ainda vazia
Eles ainda tinham ginga
E pele no corpo quando a face sorria
Ainda tinham batom sem veneno
E tinham charme sem poliestireno
E quando eu os vi
Para alem da carne
Também senti
Que tinham olhos que não eram de mármore
e sentimentos que não eram de vidro
para alem da noite rasa
e do fim de semana sem fim
eles ainda tinham uma casa
e uma singela flor brilhando viva no jardim
eles tinham algo que não estava mais em mim
eles ainda tinham uma vida
e um cachorro latindo mais que desespero
tinham um pássaro que não cabia na gaiola
e também um punhado de erros
mas tinham discos e uma vitrola
e um jeito de tocar essa viola
que seguravam juntos nas mãos
e se revezavam,
cantando seus versos de autentica
e cúmplice solidão
transpassavam toda a terrena angústia
e na voz de cada um se ouvia
a lentidão do passar dos dias
serena, plácida, sem dizer o que ali não havia
sem fazer o que não se queria
sem viver uma amarga histeria
de uma busca sem fim
onde nada existia
onde nada havia
nada alem da negação de si mesmo
quando tudo o que se precisa
é aceitar a cadência natural das coisas
e dar voz a poesia
sim,
eles ainda tinham uma vida
e algumas paginas lidas,
quando outras em branco
ainda suportariam
todo o espanto
de um dia acordar e perceber
que ali não estavam
que nunca estiveram
e que ali, nunca estariam

FC