segunda-feira, 23 de julho de 2012

ADAGIO DE UMA COTOVIA SEM VOZ



-Ela também tinha o seu lugar…
-Você não deixou ele existir,
-Muito alem daquilo que um dia seria compreensível
-Você não deixou ele falar
-Muito alem de eu e você, meu querido
-Você não deixou ele viver, enquanto ele podia, e agora estamos aqui, trancados para sempre nessa casa, no fim do mundo...


Ela também tinha o seu lugar, amarrada dentro de uma gaveta no sótão...
Eram seus olhos que não podiam falar
Eram tuas mãos que não podiam tocar
Afinal das contas, o que uma criança pode entender?
Pode escutar?
Suas vozes são os seus fantasmas, suas lagrimas reprimidas para dentro de uma garrafa de gin



Era noite quase escura,
Era branco no preto
Certo rabisco,
Incerta rasura...
Eram teus lábios no espelho
Vermelhos
Os teus olhos nos meus
E as tuas dores de cotovelo
De cotovia acidentada
De roupas velhas
Mal passadas
Do gesto,
A doce finura
E do amor,
Uma simples rasura
O indigesto gesto
Da não gestão
Da gestação passada
Amargurada
Numa árvore raquítica
Despedaçada
Pobre ilusão
Atravessada por uma corda
De um violino no pescoço
No rosto uma figueira
Flutuando em eterno exílio
E por debaixo das pálpebras
Suicídio
Dos versos sem memórias
Dos gestos sem vitórias
E um triste pedido
Para que fiques
Mesmo sabendo
Que de novo
Irás embora
Meu inverno infinito
Meu nefasto berço
Amarrado no pescoço
Junto a um terço
Que enforca
Meu menino prodígio
Sem tempo,
Meu relógio sem horas
E de novo um pedido
Para que fiques
Mesmo sabendo
Que esse tempo
Não existe no agora
Que essa vida
De dentro
Não existe lá fora


Assim cantavam as cotovias, como anjos vermelhos no telhado do céu, vestindo suas túnicas transparentes de inocência, e manchadas de desejo...
Era o céu quem lhes falava, e sua voz ainda não tinha se imbuído do timbre do fracasso humano, de todo teor do pedaço infernal habitável em um ser...
Era o céu quem lhe falava,
E a cotovia cantava,
Cantava,
Era o céu quem lhe ensinava,
E a cotovia chorava,
Chorava,
Era o céu que lhe abrigava,
E a cotovia voava,
Voava,
Inocente e feliz
Um mestre no papel de um aprendiz
Livre no seu ar
Nas suas golfadas de vida,
Uma voz para não calar
E um pensar para escrever
Todas as notas de um único vôo
Contido no incontido de um único ser
Um anjo e uma voz
Em todos os corpos
Um único ser para todos nós
Uma infinitude de corpos
Para uma única voz

Assim cantavam os anjos em alegria
Assim dançavam os homens
Fantasiados de cotovias...

FC

Nenhum comentário:

Postar um comentário